domingo, 17 de agosto de 2014

Lendo mais livros sobre joguinhos do que efetivamente jogando: sobre "Masters of Doom" e "Console Wars"

Quando consegui um Mega Drive já era um tanto tarde, e já existiam amigos ostentando sistemas de 32 e 64 bits, mas isso não me impediu de amá-lo incondicionalmente. O fato de morar numa cidade pequena ajudou, e ainda havia espaço para os cartuchos nas locadoras locais. Antes disso já era apaixonado por jogos, e a partir do momento em que descobria um jogo novo ficava curioso pela história por trás do seu desenvolvimento. A internet, nisso, me serviu muito bem, mas de tempos em tempos preciso de doses maiores de histórias sobre programadores, game designers e também dos chefões da indústria. Os dois livros tratados aqui se distinguem no objeto mas estão muito ligados em relação a escolhas narrativas que os distanciam de simples obras biográficas.

"Masters of Doom: How Two Guys Created and Empire and Tranformed Pop Culture" tem como objeto integrantes do primeiro grupo, propriamente ditos game-makers. David Kushner escreve sobre John Carmack e John Romero, os dois Johns fundadores da id Software, mas também é sobre o período; os anos 80 e o começo da popularização dos computadores pessoais, empresas de fundo de quintal que viram gigantes da informática, jogadores de RPG que se transformam em programadores para modificar a versão de Ultima pro Apple e criar suas próprias histórias, os anos 90 e a vitória do PC sobre o Mac, o nascer e o declínio do shareware para disseminação/venda de jogos, aux armes et cætera. 

Ao acompanhar ambos os Johns desde o despertar da paixão por jogos, no final dos anos 70 e início da década de 1980, busca também demonstrar o background cultural e social em que ambos estavam inseridos, nos rincões dos Estados Unidos. Os seus caminhos se cruzam magicamente e da década de 1990 praticamente criam um novo gênero: o first-person shooter - Castle Wolfenstein 3D, Doom e Quake. Vemos num primeiro momento a indústria de jogos para computadores pessoais num nível bem abaixo daquela que estava povoando os consoles da Nintendo, principalmente por esses computadores ainda serem um pouco limitados em relação a gráficos e processamento. Mas com o desenvolvimento tecnológico da mesma década e, do lado de John Carmack e Romero, criatividade para superar limitações técnicas, esses jogos que nascem no ambiente dos PC acabam sendo adaptados aos consoles. Naturalmente, no momento de ápice do sucesso eles se dividem, sendo que Carmack continua com o controle da id (hoje em dia nem ele está mais lá).

O que me fez devorar esse livro, assim como está fazendo gostar também do segundo (não acabei de ler mas já estou me dando o direito de recomendar) é a escolha por uma linguagem mais narrativa que expositiva. Ambos os livros podem ser lidos como romances. É verdade que muitas vezes durante "Masters of Doom" o narrador (isto é, o escritor) acaba por quebrar esse clima ao apontar dados, mas no geral opta por narrar em vez de expôr. No caso de "Console Wars: Sega, Nintendo, and the Battle that Defined a Generation" essa escolha é levada a extremos. 


O livro sobre o lado da Sega of America na guerra dos 16 bits, que já está virando filme, foi escrito como um romance em sua totalidade. Isso quer dizer que se não todos mas a maioria dos seus diálogos, e existem aos montes, são invenções ou adaptações feitas para soar melhor numa história. Nada de errado nisso, já que o próprio autor (Blake J. Harris) deixa isso bem claro ao abrir seu prefácio. Ninguém está tentando enganar o leitor: apesar dos diálogos fictícios e situações levemente adaptadas os fatos (desconstruídos?) estão lá. Na verdade isso pouco importa.

E acredito que essa era realmente a forma correta de se contar essa história, pelo menos a única forma possível para que ela fosse bem digerida pelo público e não parecesse massante. Afinal, não se trata aqui de adolescentes e jovens de 20 e poucos anos fazendo jogos enquanto escutam Heavy Metal. O personagem principal é o ex CEO e presidente da Sega of America, Tom Kalinske, que ocupou o cargo de 1990 até 1996, pouco depois do lançamento do Sega Saturn (o fracasso do console de 32 bits acaba causando o seu desligamento da empresa, graças também aos conflitos então surgidos entre as Sega dos dois países). Kalinske vinha de uma carreira na indústria de brinquedos, tendo ocupado um cargo de importância na Mattel. Demais personagens são marqueteiros, outros funcionários de grande gabarito da Sega dos Estados Unidos, alguns do Japão (que estão sempre em atrito com os americanos, principalmente durante o desenvolvimento do primeiro Sonic The Hedgehog), lojistas e os chefes destes, além de representantes da Sony (na época investindo em software enquanto planejava a sua entrada no mercado de hardware) e do lado do "inimigo", a Nintendo. Poucos devs. A camada principal da indústria, aquilo que a controla, ou pelo menos tenta.

A Sega que Tom Kalinske assume é uma empresa em vias de fracassar completamente pela segunda vez em território americano (como estava fracassando no Japão), afinal não havia conseguido emplacar o seu console de 8 bit (Master System), nem ao ponto de arranhar um pouco o número estrondoso de vendas do Nes. Já o de 16 bits, lá nos EUA chamado de Genesis (não diga!), também não ia bem, apesar de ter sido lançado tempos antes do Super Nintendo. O que coloca a Sega em pé de igualdade com a Gigante Nipônica, e até a passá-la em vendas num mágico momento, não foi fruto apenas do sucesso causado pelo seu mascote ouriço azul veloz: foi todo um esforço de propaganda e perspicácia em negócios de Kalinske e sua "turma", que continha poucos especialistas no mercado de games (como ele também não era).

Bacana apontar também nesse relato como no começo da década de 90 as third parties já estavam insatisfeitas com a Big N, principalmente pela sua política do "selo de qualidade" (que limitava um tanto o número de jogos que poderiam ser lançados por ano) e a obrigação por comprar na Nintendo os cartuchos - que retirava boa parte do lucro. É claro que, limitando o número de jogos e procurando ter um controle quanto ao acervo e sua qualidade, ela estava tentando evitar algo parecido com o crash que sofreu a mesma indústria na década anterior, causada pela abundância de títulos ruins para o Atari 5200, por exemplo. Crash esse que motivou em muito a indústria de games para computadores. O motivo por permanecerem fieis à Nintendo naquela época, se pararmos para pensar, é o inverso do que hoje afasta tais distribuidoras, que é a base de consoles vendidos/público consumidor. O Wii U não vende por ter apoio de terceiros quase nulo e por vender pouco esses terceiros não vêem vantagem de lançar os seus jogos ali. O Mega Drive, ao se popularizar, acaba atraindo a atenção dessas thirds, e... assunto pra outro post.

Os desenvolvedores poucas vezes aparecem nessa história, e nessas raras vezes sua presença se faz de maneira indireta, na visão daqueles para os quais eles trabalham. O papel da SoA na transformação do rascunho inicial do Sonic, algo japonês demais (no estilo "o que um japonês acha que faz sucesso no ocidente") e com pouco apelo para o público ocidental, num ícone cultural noventista (como também se torna Doom), contar tal saga é de extrema importância. O mercado literário já devia um livro sobre o lado da Sega (a influência da Nintendo já foi destrinchada de diversas formas em inúmeras publicações); apesar de não ser o estudo detalhado e totalmente fiel aos fatos que a temática ainda merece, uma boa história é uma boa história. E com certeza dará um bom filme, mas antes de mais nada é um bom livro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário