sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Momoe Yamaguchi, a era Showa e sua música popular

O Japão era outro na década de 1970. O perfeito prelúdio para essa década foram as revoltas estudantis que ocorreram nos últimos anos de 60, esses dois anos tão nervosos em todo o mundo, a começar pelo maio de 1968 francês. Yukio Mishima e o seu seppuku ao abrir da década faz cair por terra o sonho, ao menos por aquele instante, pela volta do Japão de outrora, o imperador como líder incontestável e livre de qualquer influência ocidental-estadunidense, cujas forças de ocupação tinham deixado o pais em 1952 mas permaneceria para sempre sua influência na política e sociedade. Permanecia também amarras na questão militar, buscando conter o espírito imperialista japonês que o fez tentar dominar toda a Ásia e se aliar ao Eixo.

Em matéria de música, o fim da guerra também trouxe mudanças significativas. Deixado de lado as marchas militares, o enka tomou conta da rádio, gravadoras e televisão. Erroneamente chamado de música tradicional, ele procura incluir sim referências ao folclórico, mas é uma invenção do pós-guerra e incluí influência do jazz vocal norteamericano - da mesma forma que é em matéria de instrumentos, tirando coisa ou outra de tradicional. Mas o enka sempre se baseou em técnica vocal e sentimentalismo, pelo seu ritmo típico de balada. Não demorou para surgir um outro jeito de cantar, com até mais apelo popular que o enka, e que também representava a abertura da cultura japonesa ao estrangeiro.

Como termo que reúne estilos musicais distintos mas que se distinguem do enka e do j-pop (conceito também muito recente, próprio da década de 80) surgiu o kayōkyoku, que em nihongo significa apenas canção popular. Seus cantores não forçavam tanto a voz para cada música soar como óperas trágicas, seu ritmo muitas vezes era mais rápido e suas influências externas cada vez mais óbvias. Se cantores como Hachiro Kasuga representavam o enka em sua forma pura, outra como Hibari Misora, que também se consagrou no enka, poderiam se encontrar no segundo grupo, estando no limiar do kayōkyoku ao gravar canções de diversos estilos. Hibari Misora também foi uma das mais populares artistas do pós-guerra, e era uma artista completa já que além de cantar, com uma flexibilidade tremenda, atuava bem o suficiente para os filmes açucarados da época.

Nos anos 60 tais influências se distanciaram do jazz para encontrar no rock e no crescente pop americano os elementos para serem copiados. É a época também das idols francesas, do yé-yé, que planta as sementes para a indústria idol nipônica. É a década de muitas bandas de rock formadas por garotos que ouviram Beatles (e outros ingleses) demais, mas na mesma medida surgem cantoras e grupos femininos como a dupla de gêmeas The Peanuts (as pequeninas dos filmes "Mothra" e "Ghidorah, The Three Headed Monster", que cantam para "summonar" a mariposa), cuja discografia inclui muitas versões de sucessos ocidentais.

E então nos anos 70 surge Momoe.


Nascida em 1959, e assim como Hibari Misora (que havia se iniciado como cantora antes dos 10 anos de idade, gravando aos doze), começou a sua carreira muito cedo, em 1972 - tinha 13 anos. E assim como Misora, a carreira de Momoe já iniciou-se dividida entre a música e a atuação. Foi no cinema que ela encontrou aquele que em 1980 viria a ser o motivo da sua precoce aposentadoria (por causa de casamento), o ator Tomokazu Miura.

Momoe primeiramente seguiu as fórmulas já consagradas da indústria cultural, com os seus filmes açucarados e músicas de amor, algumas no início de careira já com subtexto sexual, bem leve, como viria a ser comum em letras de idols = principalmente em se tratando de grupos e artistas que exploravam a juventude, sailor fuku, descobrimento do amor, etc. O que vale observar nesses primeiros singles é o óbvio talento para a canção que a menina já demonstrava, com uma voz forte que não sofreu variação (negativa, ao menos, já que dá pra dizer que ela dá uma encorpada) do primeiro ao último álbum. Momoe aos treze já cantava como mulher. E era capaz de cantar de tudo, como demonstra a inconstância de gêneros do seu primeiro disco, "Toshigoro" (já recebendo o título do seu primeiro filme, mesmo nome da música tema). É variado, mas é essencialmente o pop que se fazia naquele momento no Japão, com faixas remetendo diretamente ao girl pop americano da década anterior. 

Liricamente o disco de 1973 é mais interessante que a sua estréia. E é a partir de 73/74 que explode realmente em popularidade, sendo bem representada pelo convite para abrir o Kohaku Uta Gassen (tradicional especial musical de reveillon, exibido todos os anos desde o começo da década de 1950 pelo NHK) do final de 1974. Lá, Momoe canta o seu single de maior sucesso à época, "Hito Natsu No Keiken" (pode ser traduzido como "uma experiência de verão").  Em certo momento deste seu 5º single. Momoe diz que está disposta a lhe dar (para quem a canção se refere, um garoto ou ao ouvinte) aquilo de mais importante que uma garota possui. É claro que a interpretação sexual de tal frase (o mais importante; sua virgindade), assim com coisas mais óbvias tal qual "Les Sucettes" da France Gall, escrita por Serge Gainsbourg já com a intenção de subversão em mente, acabou por ultrapassar interpretações mais inocentes (Momoe mesmo dizia se tratar de "devoção", mas as intenções do compositor provavelmente eram outras). Apesar de aparentemente recatada até hoje, a sociedade japonesa daquela década já estava aberta para discussões acerca de sexualidade, afinal de contas a abertura sexual dos anos 60 também atingiu aquele oriente ocidentalizado. 


"Hito Natsu No Keiken" também é o título do seu 4º disco (já que esse single era o seu carro chefe), e é o primeiro de uma série a contar também com pequenas narrações no começo de algumas faixas, algo raro em se tratando de música pop. Nos anos seguintes veio o amadurecimento (de voz e ideias), enquanto continuava a participar dos especiais da NHK e lançar discos e filmes todos os anos. Enquanto no pop japonês grupos como as Candies (um dos grupos idol originais) e Pink Lady (esse segundo, uma dupla formada em 1976, calcada na disco music e que também teve um programa - horrível - na TV americana na década seguinte) faziam relativo sucesso com músicas animadas e rápidas, as canções de Momoe tomaram direções mais sérias, apesar de ainda cantar um pop muito comerciável e não sofrer declínio na sua popularidade como atriz e cantora, mantendo também uma variação em seus discos. A evolução de Momoe como artista é também a evolução desta música que viria a se tornar o que hoje em dia chamamos de j-pop, principalmente a partir e durante o período da baburu keiki (a bolha financeira e imobiliária da metade dos anos 80 aos 90).

O ápice de criatividade e musicalidade naquela década para mim se dá em dois álbuns, resumindo; o primeiro, "Golden Flight", de 1977 e "Cosmos", do ano seguinte. "Golden Flight" é a década de 70 em forma de disco pop japonês, condensa em dez faixas rock, blues, jazz, um pouco de disco music, reggae... talvez um dos mais ecléticos de toda a discografia, e com esse pluralismo cosmopolita dialoga com o city pop em voga nos toca-fitas de carros esportivos que transitavam pelas ruas de Tokyo, dirigidos por yuppies. Sim, se trata de um disco de muito groove. O clima meio city pop está presente principalmente em "L.A. BLUE", de 1979; aqui o baixo brilha em quase todas as faixas, como é de praxe no "gênero", emulando um pouco de funk e soul, uns metais aqui e ali. Coisa fina.

Entre esses trabalhos diferenciados (e depois de "Cosmos"), uma outra ode à balada dramática se eleva em 1978 com "Dramatic" e "Manjushaka", e em 1979, "A Face in a Vision". Momoe prova, nesses seus últimos anos de carreira, que podia fazer de tudo, sem perder brilho.

"Cosmos" também se destaca por ser diferente e, principalmente, temático. Se trata de uma ópera espacial, sci-fi, também brincando com a volatilidade do pop (aqui deveras sinfônico) na questão rítmica e na questão lírica. O formato de ópera-rock foi melhor explorado em "Fushichou Densetsu", o terceiro de quatro discos lançados em 1980, mesmo ano da sua graduação do mundo da música. "Cosmos" é mais livre, apesar de se manter dentro de um conceito, ele se apresenta mais como metáfora que literal. "Fushichou Densetsu" também conta com uma das músicas mais  fantásticas de Momoe, "Sayonara no Mukougawa": no seu último show, no Nippon Budokan em 5 de outubro do abrir da nova década, é nessa canção que ela acaba por se render às lágrimas, tamanho o seu significado no contexto da sua despedida de seus fãs (infelizmente o vídeo que existia dessa apresentação no youtube foi excluído).


Em certo momento de Amachan, o 88º "asadora" (dorama matinal) da NHK que foi transmitido no ano passado, Haruko Amano (a mãe da protagonista, interpretada nada mais nada menos que Kyoko Koizumi, idol nos 80s) diz para a sua filha, naquele momento curiosa sobre a história de tentativas da sua mãe nessa indústria, que na metade de 1980 (ano em que a personagem também decidiria ser uma idol) existiam duas grandes idols em atividade, já que Momoe Yamaguchi ainda não havia se aposentado. A outra era Seiko Matsuda, que havia "debutado" nos primeiros meses daquele ano. Rainha deposta, rainha posta? Ao menos para a Haruko. Não dá pra comparar Momoe em seu ápice, e canto do cisne, com Seiko-chan em seu início de carreira.

A verdade é que é possível dividir esse nicho da música popular entre o antes e depois de Momoe, porque a indústria evoluiu com ela nesses anos entre 1973 e 1980. Se houve uma "herdeira" de Momoe no cenário pop japonês da última década do período Showa esse alguém foi Akina Nakamori. Mas ela, a Seiko e demais oitentistas são assuntos pra outros posts da série "História J-pop para Wotas Ignorantes", assim como outras idols de menor estrelismo dos 70s que continuaram suas carreiras na nova década.

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